
O burnout não é uma inevitabilidade
Um estudo efetuado pelo colega Carlos Reis, no âmbito de uma tese de mestrado e posteriormente publicado na Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, apontou para uma prevalência de síndrome de burnout em médicos de família da Região Norte de 17%, com 66% a revelarem elevada exaustão emocional e 45,7% despersonalização acentuada. Tal estudo extraiu dados de uma investigação mais vasta, desenvolvida em 2016 pela Ordem dos Médicos (OM) e direcionada para médicos de todas as especialidades, a qual mostrou que dois terços dos médicos em Portugal admitiam estar em elevado estado de exaustão emocional, 39% indicavam níveis elevados de despersonalização e 30% altos níveis de diminuição da realização profissional. Mais recentemente, dados recolhidos ao abrigo de um novo estudo da OM, desta vez focado nos médicos internos, comprovou que entre os jovens médicos 35,5% havia iniciado apoio psicológico ou psiquiátrico durante o internato e somente 16,5% considerava a relação entre a vida pessoal e profissional equilibrada.
O burnout é, assim, um fenómeno grave que afeta a classe médica portuguesa (e os médicos de família – MF – por inerência), que importa mitigar com a máxima urgência, mas também compreender em toda a sua complexidade. Com o intuito de debater a fundo assuas causas e contextos, bem como soluções sobretudo individuais que podem ser implementadas para diminuir o seu impacto, o 42º Encontro Nacional propõe a sessão «Prevenção de burnout», a realizar-se no dia 28 de março, pelas10h00. A sessão será moderada por Susete Simões (membro da Direção Nacional da APMGF e da Comissão Organizadora) e contará com intervenções de Ana Margarida Cruz (especialista em MGF na USF Bom Porto, docente no ICBAS e membro da Associação Portuguesa de Grupos Balint), Inês Rosendo (especialista em MGF na USF Coimbra Centro, regente da cadeira de MGF na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e vice-presidente da Secção Regional do Centro da OM) e Ana Luís Pereira (especialista em MGF e co-fundadora da HSC – Healthy SmartCities).
Na perspetiva de Ana Margarida Cruz, a evidência assustadora obtida apartir das investigações atrás mencionadas terá tido continuidade nos últimosanos: “de forma empírica, acredito que essa prevalência se mantenha ou atétenha aumentado, tendo em conta o atual contexto profissional e social. Asconsequências do burnout nunca devem ser subestimadas, pois afetam nãoapenas o indivíduo, mas também a sua equipa e o seu contexto social e familiar.Trata-se de uma reação extrema, um estado de exaustão no qual o médico perde aconfiança nas suas capacidades e, literalmente, adoece”. Por seu turno, InêsRosendo admite que lidou de forma direta com pessoas afetadas por estasíndrome: “já tive algumas pessoas na equipa com consequências de burnoute acho essencial prevenir. Foi mais acentuado na altura da Covid, em que eradifícil lidar com algo de que não estávamos à espera. Mas tendo maisferramentas, podemos proteger-nos melhor individualmente e como equipa”.
Existem, de facto, abordagens e metodologias que o profissional de saúde pode adotar com vista a prevenir a entrada nesta espiral descendente. Uma delas é a participação num grupo Balint, como explica Ana Margarida Cruz: “aminha experiência com os Balint surgiu no meu primeiro ano como especialista em MGF. Recordo a tensão e o stress em que me encontrava e o facto de saber que a colega que me antecedeu no mesmo cargo tinha saído em burnout. Foi um desafio enorme e os Balint tornaram-se a minha orientação para a prática de uma medicina centrada na relação médico-doente, promovendo o autoconhecimento e um crescimento pessoal que não se esgota numa ou outra intervenção isolada. Tomar consciência do nosso papel como MF exige uma mudança de postura e uma análise regular e consciente das nossas ações e reações ao interagir com outro ser humano que, naquele momento, assume o papel de paciente”.
Fazer parte de um grupo Balint é uma opção muito válida para reduzir a probabilidade de o burnout se instalar, mas não é a única alternativa. "Em Tróia. vou partilhar uma ferramenta de auto-conhecimento que temos aplicado em USF, empresas, serviços hospitalares, na universidade... Temos estudado os seus efeitos e parece ser protetor ter um maior conhecimento das nossas formas de reagir e de atuar (e saber formas de as aprimorar e desenvolver), de trabalharmos a nossa auto-realização pessoal, assim como fazer este trabalho em equipa, permitindo às pessoas conhecerem-se mais profundamente umas às outras, fora do contexto de trabalho. Usamos concretamente o «eneagrama» para fazer estes trabalhos, por ajudar não só a conhecer-nos, mas também a ir um pouco mais além em termos de crescimento, desenvolvimento e realização pessoal e de equipa. Vou explicar um pouco o que é esta ferramenta, o que temos feito e como ela poderá ajudar os colegas”, avança Inês Rosendo.
No que respeita aos primeiros sinais de burnout a que todos devem estar atentos – a fim de se iniciar uma trajetória corretiva que permita ao médico não ver a sua condição deteriorar-se – e ao tipo de intervenção que pode ser planeada, Ana Margarida Cruz lembra que “todos necessitamos de uma análise autocrítica da nossa prática clínica” e que os grupos Balint “integram a formação médica em alguns países e, em especialidades como a Psiquiatria, fazem parte do acompanhamento regular dos internos. Vejo colegas em esforço constante e percebo como seria relevante para muitos terem contacto com a metodologia Balint. No entanto, como qualquer outro processo que exige envolvimento genuíno e compromisso a longo prazo, a vontade de aderir deve partir do próprio”. A MF da USF Bom Porto frisa que “o contacto e a exposição ao método devem ser precoces, permitindo que o MF reconheça o momento certo para dele beneficiar. Como referi no meu exemplo, sinais como o medo do desafio, a dificuldade de concentração ou a sensação de dúvida sobre o próprio desempenho não devem ser ignorados. São alertas importantes”.
Já na ótica de Inês Rosendo, “o mais importante é ter auto-consciência, que na verdade é o que a ferramenta de que vou falar ajuda a fazer. Ajuda atirar mais tempo para parar e olhar para dentro. Diria que é importante fazer uma auto-avaliação de vida, de vez em quando, perceber como me sinto e se estou realizado, o que gostava que fosse diferente (quase como fazer um auto-círculo de Thrower, diria..), perceber como posso mudar o que não está como gostava e oque está nas minhas mãos mudar. A prevenção é o melhor remédio. Mas estar atento a sinais, para deteção precoce, será também importante. Vou falar de alguns que derivam depois da nossa forma de ser ou estar na vida e no trabalho, como se fossem um sinal amarelo quando estou no trânsito: sentir-me irritável, sentir-me sem energia, estar sempre a explodir, ter dificuldade em dizer que não e não ter tempo para cuidar de mim, sentir que os outros estão contra mim, sentir que não consigo atingir nenhum objetivo, sentir-me triste e sem vontade de fazer nada, isolar-me, desconfiar de tudo e todos, dispersar-me demasiado...Tudo o que me atrapalha e não me deixa ser feliz, realizado e ser quem eu realmente sou, pode estar a ser um sinal de que algo precisa de ser mudado/melhorado”.