David Marçal : “Não faltam motivos para nos deslumbrarmos!”

Num 42º Encontro Nacional enquadrado pelo mote «Regressar ao deslumbramento», que melhor início poderia ser pensado do que uma conferência inaugural da autoria de David Marçal, o bioquímico que se tornou jornalista, guionista, escritor e sempre respeitado divulgador de ciência. Um convidado de honra, que regressa ao fórum maior da MGF nacional para falar sobre a importância de manter viva a chama e deslumbramento pela ciência, apesar dos perigos da desinformação na era digital, os interesses que se escondem sob falsas capas de respeitabilidade académica ou as inenarráveis campanhas para descredibilizar ou lançar dúvidas sobre descobertas científicas sólidas. Venha a Tróia, deslumbrar-se com a sagacidade e a pertinência de David Marçal.

Que temas gerais pretende abordar na sua comunicação aos representantes da Medicina Geral e Familiar em março?

Irei falar de alguns avanços na área biomédica, tendo como fio condutor alguns Prémios Nobel recentes. Há coisas de facto extraordinárias, os avanços no conhecimento vão continuar a permitir-nos viver mais e melhor. Pelo menos é isso que tem acontecido e é isso que eu espero que continue a acontecer.

Será possível aos profissionais manterem, ainda e sempre, um verdadeiro deslumbramento pela ciência (por sinal, o lema do evento) numa época tão marcada pela desinformação e por tentativas de descrédito da mesma?

Julgo que é possível para todos mantermos o deslumbramento pela ciência. Apesar de vivermos numa época de desinformação, vivemos também na época em que foram desenvolvidas vacinas para a covid-19, com uma tecnologia nova e diferente das tecnologias de todas as vacinas anteriores, num tempo recorde. Assistimos também a uma explosão da Inteligência Artificial que poderá potenciar bastante o conhecimento que já temos. Na verdade, até nos ajuda a criar conhecimento novo, como é o caso dos trabalhos na origem do Nobel da Química de 2024, que permitem determinar estruturas tridimensionais de proteínas. Isto na área biomédica. Mas há muitas outras, desde a emergente computação quântica, que não saberemos onde nos levará, ao novo ímpeto da exploração espacial. Na verdade, tudo isso tem potenciais ligações à medicina. Por exemplo, os computadores quânticos, se conseguirem resolver os problemas técnicos que os limitam, poderão ser muito bons a resolver problemas relevantes para a medicina. A natureza é quântica. A presença de seres humanos no Espaço levanta novos desafios para a medicina e é também uma oportunidade de investigação. Não faltam motivos para nos deslumbrarmos!

A terem de escolher uma única arma, na luta contra a falsa ciência/medicina e no contacto regular com os seus doentes, qual deverão privilegiar os médicos de família?

Não sendo médico é-me difícil opinar sobre a relação médico-doente. Não subestimo a dificuldade de lidar com esse tipo de situações, em que doentes recorrem a terapias alternativas, inúteis ou potencialmente perigosas. A arma é sempre a informação correta, mas sabemos bem que ela nem sempre é suficiente. Idealmente os médicos deveriam ter tempo suficiente para terem uma conversa franca com o doente em questão, ouvindo também os seus argumentos.

Como olha pessoalmente para a falta de tempo relatada por muitos profissionais de saúde para a atualização e evolução científica? Devemos, em 2025, resignar-nos à ideia de que o tempo protegido para estas matérias é uma miragem?

Penso que não nos devemos resignar. A atualização científica é fundamental, a medicina avança ao longo das décadas, há novas abordagens, conceitos que mudam. Para dar apenas um exemplo, o modo como vemos a obesidade tem vindo a evoluir muito. É absurdo pensar que um médico deve exercer com base numa versão cristalizada da sua formação inicial. Os médicos devem ter tempo para se atualizarem cientificamente e até para participar em projetos de investigação científica, se assim o desejarem. Também sei que os médicos estão atualmente muito pressionados para realizarem mais consultas e que têm dificuldade em obter tempo protegido para essas atividades. Mas não nos devemos resignar.